top of page

A educação pelos objetos

Agnaldo Farias

E se fôssemos abandonados pelas coisas, se todos os objetos existentes nos deixassem sós, às voltas com as paredes nuas das casas, em confronto direto com o corpo da arquitetura, com seus muros verticais e indiferentes, sua geometria feita de cimento, tijolos e cal, produtora de espaços cúbicos regulares, como uma roupagem padronizada sem nenhuma afeição pelas nossas dobras, pela irregularidade orgânica das cabeças, troncos e membros, pela maleabilidade das mãos, pelo arqueio flexível dos pés que parece sopesar o chão à medida em que caminhamos?

Admiramos a arquitetura pelo sentimento de abrigo que ela nos oferece, mas, pensando bem, ela é um ser muito diverso de nós, longe de ter a portabilidade dos objetos, sem a mesma adesão proposta por eles, indubitavelmente mais próximos, acessíveis, extensões evidentes de nós mesmos, o que se verifica pelo uso continuado, quando eles se impregnam do nosso suor, quando as xicrinhas de café têm as bordas de porcelana gastas pelo contato com os lábios, as alças das bolsas desfazem-se pelo atrito dos dedos agarrados, a irregularidade do colchão macio significa a memória do peso e forma do nosso corpo, a toalha da mesa converte-se num mosaico de manchas desbotadas, um conjunto de nódoas resultantes dos pequenos desastres que permeiam as infinitas refeições havidas sobre elas.

Não é que também a arquitetura não receba nossas marcas, até porque é da nossa natureza impregnarmos tudo o que está ao nosso redor, e será fácil verificar que o homem nasceu desse contato conflituoso com o mundo. Mas acontece que a maioria das pegadas que deixamos sobre a arquitetura são oblíquas, resultam de ações indiretas. Salvo o piso, é verdade, que se desgasta e escurece na razão das diminutas marchas domésticas, as eternas rotas compreendidas entre o ir e vir da sala para a cozinha, do quarto para o banheiro, e vice-versa, além do roçar entre corpos nos corredores, à maneira das formigas no tateio recíproco das antenas. Por outro lado, temos que admitir que o piso pertence antes ao mundo que à arquitetura. E que aquilo que chamamos de piso nada mais é que o chão, o mesmo que corre lá fora, desbordado quando ultrapassa os limites das cidades, apenas que recoberto por um espaço construído. Ainda que situado nos confins de um 24o. andar e em versão azulejada, de porcelanato brilhante, não importa, o piso é o chão reiterado, a evidência de nossa submissão à terra.

Ao menos até aqui, a obra de Nino Cais, desenhos, fotografias, performances, vídeos e assemblages, afigura-se como uma tentativa de estabelecer um contato com a arquitetura através do objeto, uma forma de suavizar a nossa relação com ela, ao mesmo tempo que de pesquisar suas possibilidades . Não exclusivamente, é certo, pois também se contam as vezes em que a tentativa de aproximação da arquitetura dá-se através de usos alternativos do espaço doméstico, como a fotografia em que o vemos encaixado, acomodado seria

excessivo, no teto do corredor, logo acima do batente da porta da cozinha. Mas, no geral, seu trabalho versa sobre o objeto, uma longa e amorosa relação com ele e sua

capacidade de mediar nossas relações com o mundo, o mesmo princípio que rege um navio qualquer, de bote a petroleiro, fazendo-o necessitar de um porto, um cais que o apazigúe, impedindo-o de flutuar à deriva.

O artista percebe os objetos mais próximos ao corpo do que a arquitetura; eles seriam mais cientes das suas necessidades e desejos, solidários em suas ações por ordinárias que sejam, como a cadeira que se presta ao descanso, o copo que amplifica e profissionaliza a concha formada pelas mãos. O mundo sem objetos seria quase desabitado. Embora com suas paredes e teto a arquitetura nos resguarde das intempéries, sem a presença dos objetos ela se tornaria uma casca ainda mais vazia e nós nos sentiríamos definitivamente tomados pela solidão. O objeto não, o objeto cabe na mão, pode ser acariciado por tatos e olhos, percutido com os dedos, o que é um modo de referir-se ao quanto eles contribuem para que os nossos sentidos se depurem. Daí nossa afinidade e cuidado para com eles, daí também a razão pela qual eles se convertem em testemunhos imediatos de nossas ações e acontecimentos, o motivo pelo qual gostamos de estar rodeados por eles do mesmo modo como quem gosta de se ver rodeado por amigos. Mas amigos silenciosos e inescrutáveis, sem a subserviência vexatória dos cães, esses escravos da atenção alheia.

A aura do objeto, a singularidade assumida ao passar dos anos,
obtida às custas do convívio humano, é algo tão poderoso que não nos furtamos ao interesse por aqueles encontrados em antiquários
e brechós. Veja bem: quando se muda para uma casa a primeira providência é pintar suas paredes, velar as marcas deixadas pelos antigos moradores, os vestígios de suas presenças. Por outro lado, interessa-nos as cicatrizes dos objetos e, salvo quando eles exijam reparos para prosseguir no pleno desempenho de suas promessas funcionais, não os recuperamos. Interessa-nos contemplar os objetos até para pensarmos qual teria sido a longa viagem da origem até aqui, até a mesa de centro, como essas pequenas vagas que finalmente desembocam na praia do nosso corpo.

É notável a delicadeza que Nino Cais devota aos objetos, o modo como equilibra seu corpo magro sobre eles, deixando-os que se interponham entre seu corpo e o chão, seu corpo e a parede. Taças e copos, panelas e xícaras, vasos e baldes, embora todos sejam tão artificiais quanto a arquitetura, o são menos. A ergonomia que preside suas dimensões

e formatos, a praticidade das alças, o conveniência das alturas dos espaldares, tudo isso concorre para que o artista utilize-os como ponte entre ele e o resto do mundo. Certas soluções, como a pilha formada por canecas e panelas de ágate, com as quais o artista, de olhos fechados, meditativo, preme a cabeça sobre a parede, assemelha-se

a um periscópio, um instrumento por intermédio do qual ele ausculta sabe-se lá o quê, toma conhecimento sobre o que vai além ou,
talvez, sobre si mesmo. Do mesmo modo, o arriscado exercício de
se equilibrar com os joelhos sobre os pés de duas taças emborcadas contra o chão, equivale ao personagem de um conto de Virgilio Piñera, que se lançava à prática de nadar no seco e, reagindo aos comentários de quem o presumia louco, volta e meia

mergulhava a mão nos ladrilhos para em seu interior, “nas profundezas submarinas”, agarrar e oferecer um peixe.

Que mundo será esse inventado por Nino Cais? Seriam os objetos os instrumentos de captação de uma realidade oculta e o emprego de novas sintaxes entre eles o deflagrador de novos espaços e, com eles, de novas possibilidades do nosso corpo? O fato é que, nesse mundo de parcas experiências, o que pode o nosso corpo trazer sob a forma de memória? A necessidade de reinventá-lo passa forçosamente pela reeducação dos nossos gestos e ações, voltarmos a receber outras lições das coisas, as mesmas coisas de sempre.

  • Instagram

©2020 Nino Cais

bottom of page