A glorificação do mundo, sobre Nino Cais e sobre a arte de Nino Cais, uma e outra coisa muito indestrinçáveis, ao menos para o meu espírito enxerido e a perder vergonha, onde também digo que somos primos entre todos e entre coisas, como cortinados, por mais absurdo que isso pareça, digo mesmo.
Valter Hugo Mãe
Parte Um
Quando frequentarem a arte de Nino Cais não pensem nos objetos que (re)utiliza como materiais salvos do esquecimento, pensem em materiais convidados para o sublime. O ponto fundamental da lógica de Nino Cais é a glorificação. Aquilo que toca ascende. Nino tem um gesto de luxo que espiritualiza cada coisa. Nada mais é inanimado. O que expõe é orgânico e vive. Como Midas mas que, ao invés de ouro, concede alma àquilo em que coloca a mão.
Se é verdade o que afirmam os cientistas da Física Quântica, tudo quanto é tangível no universo comunga de um mesmo radical. O corpo da totalidade das coisas, vivas ou mortas, é um estádio de memória de uma comunhão antiga. A essa memória gosto de chamar inteligência. A inteligência da própria matéria do universo que amadurece. Que amadurece sempre. É sobre esta contingência que Nino Cais opera. Ele descobre a empatia e opera por um retumbante glamour. Aproxima matérias de modo nada óbvio mas invariavelmente esplendoroso, como se desde as razões primordiais as matérias esperassem tal resultado. Como se a inteligência da própria natureza esperasse tal resultado.
Entre o que aproxima há uma recorrência, a participação do indivíduo, desde logo, do próprio corpo do artista. Tudo é um retrato e Nino não se retrata para diferir, ele assume, é para pertencer a uma mesma identidade. Aquilo que parece tralha ou relíquia, coisa de criança ou arte ensimesmada, vira tudo uma peça só. Tudo é bicho e é planta, tudo é tecido, casa, rua. Tudo é o mundo inteiro. Nino e coisas são arte, talvez a arte seja a única forma de dar voz a essa inteligência das matérias. Eu acredito até que os objetos, como nos contos infantis, conversem muito sobre Nino, discutindo assuntos e ideias, ansiando por ele como apaixonados. Visitei a sua casa por várias vezes e juro que senti os tapetes suspirando à sua passagem, senti os armários e as vassouras, os pratos em que serviu a salada, as cortinas com flores. Tudo reconhece a sua presença e regozija. As cortinas da casa do Nino Cais têm flores estampadas e eu acredito até que elas fazem a fotossíntese. Ninguém me pode convencer do contrário. A Física Quântica, eu acho, um dia vai provar isso. A Física Quântica, um dia, vai provar que os objetos amam o Nino Cais e, se não o tiverem já, eles conseguirão produzir o seu próprio coração para melhor saberem amar. Só alguém muito sem sonho não terá como acreditar nisso.
Está em causa a identidade. A assemblage de Nino Cais implica a recuperação, reintegração, transferência, revisão, mas também a pura ressurreição ou reincarnação dos materiais. Tudo quanto convoca se repensa numa necessária deslocação ou mudança de significado.
Para a arte todos os milagres são quotidianos, e não admira que Nino Cais prepondere no feitiço. Se é certo que a expressão artística é uma evolução do que começou por ser uma mística humana, linguagem para ir ao encontro do desconhecido e sondar o incrível, a arte não perderá nunca a dimensão transcendente e só se esgotará quando
não for arte. Tudo em Nino Cais é pura transgressão do real. Transcendência esfusiante, o que acontece com seu trabalho é a super-identidade. A mescla de todas as forças para a única força plausível, a da memória absoluta do mundo e sua glorificação. A única eternidade é esta.
Parte dois
Eu sou escritor e não estudei artes plásticas. Se vocês esperavam um texto académico bem comportado vocês mostraram muita imprudência. É verdade que costumo disfarçar um pouco, fazer umas citações e criar um ar meio importante, mas com Nino não posso. Fiquei bruto das emoções quando encontrei a sua obra na Bienal de São Paulo. Achei que era minha alma escrutinada despudoradamente nas paredes de Oscar Niemeyer. De então para cá, eu só não tenho joia de criança colada nos olhos porque preciso de ver por estar ainda acossado na luta pela sobrevivência. Mas a extremidade da felicidade pode ser só isso, ficar quieto numa composição do Nino e deixar que toda a mensagem seja a mais encantadora beleza.
O que se torna desarmante no trabalho do Nino é que quase achamos simples. É exatamente o que parece a meditação. Olhamos a pessoa que medita e ela sugere apenas uma imóvel pacificação. Mas dotar de alma objetos não é da ordem da simplicidade. É até um absurdo. Quando paramos ao centro de uma sala de Nino Cais já não observamos como de costume. Somos observados. Cada coisa pensa sobre nós. Aqueles rostos das fotografias antigas assumem os olhos, ao contrário de outras peças, mas todas as peças estão conscientes da nossa presença entre elas. A arte medita. Sugere a imobilidade, mas é mentira. Ela medita. E nós somos uma parte, porque também, crendo ou não, guardamos a memória primordial que nos faz família uns dos outros e também das plantas e das cadeiras, dos vasos e dos lençóis, do papel impresso ou da lâmina de vidro. Somos família. Nem que dê um frio na espinha, medo, ansiedade, gozo, nojo, somos mesmo. Somos, afinal, primos do cortinado de Nino Cais e primos de Nino Cais. Fica fácil de entender porque tanto nos diz respeito e comove.
Parte três
Muito do que define a arte de Nino Cais passa pelo conceito de casa. O indivíduo como habitando mas também como dando identidade ao lugar. No entanto, progressivamente o que acontece é que Nino explora o mundo enquanto inevitável ligação com o universo doméstico, até íntimo. A biblioteca, por exemplo, ensandece. A gente sabe bem que característica de biblioteca é ser tudo, porque ela existe para significar deslocação, fantasia, profundidade, fuga, regresso, encontro, todo o tempo, tempo nenhum. Hoje, os livros de Nino Cais deitaram flor. Eles não estavam mortamente interessados em obedecer aos textos e às imagens que lhes imprimiram. Os livros florestaram novamente o lugar. No centro de São Paulo, bem no concreto, deu uma floresta inusitada. A partir dela os livros são repensados enquanto também nos repensam e problematizam cada questão. O que quero dizer é que a casa transborda. Ela vira cidade e vira tudo.
Afinal, é muito claro agora, tudo em torno do Nino faz a fotossíntese. E, se não vier o sol, acredito bem que há uma luz interior justificando o fenómeno. Nino Cais é um artista de luminária. Tudo se acende. É tudo para acender. Faça o favor de reparar, e seja bem-vindo à maravilha.